Longe de mim ser saudosista, mas cada época tem possibilidades que acabam sendo impossíveis de oferecer a novas gerações. Assim como não tivemos os passeios bucólicos de bicicleta pelas vias rurais de Juiz de Fora como nossos pais e avós tiveram, eles também não tiveram as nossas chances. E com o bicicross foi assim. Velocidade, sangue nas canelas ao som de AC/DC.
Era uma preocupação dos pais dos anos oitenta que não fôssemos muito longe. Embora não houvesse um décimo de receio com violência como há hoje, éramos crianças que não deviam se afastar muito de casa. Brincar nas ruas do bairro era algo possível, desejável e seguro. Nem carro passava direito para atrapalhar.
Ainda nos anos 70 o então prefeito Mello Reis, cheio de boas intenções, iniciou uma obra controversa onde hoje está o Condomínio Neo-residencial: o Estádio Regional! Havia um stand de vendas, com uma bela maquete, no Calçadão, onde você poderia adquirir uma cadeira cativa para usá-la livremente em qualquer jogo sem pagar ingresso! O plano era vender cadeiras cativas o suficiente para construir o estádio. O resultado você já sabe, não deu certo. Tupi, Sport e Tupynambás não nos fazem pôr a mão no bolso.
Mas, as máquinas já haviam começado a terraplenagem no local e lá estava um terreno criando poeira e lama. Foi por causa desse projeto fracassado que Juiz de Fora teve outro projeto fracassado, o de ser sede de uma unidade da Monark. Para não perder o trabalho envolvido no finado estádio, o terreno foi oferecido para a fábrica de bicicletas. Todos em Juiz de Fora ficaram felizes com a ideia e já se imaginavam pedalando uma Monark, achando que isso permitiria preços módicos e... ficou nisso mesmo. Mas, isso mostra como gostamos de bicicleta.
Essa é a magia do “nada se cria, tudo se perde ou quem sabe se transforma” em Juiz de Fora. Esse espaço cheio de erosão onde também teve um kartódromo e uma pista de aeromodelismo foi, primeiro, herdeira das pistas de motocross do Cascatinha. Estou falando de uma época em que o bairro Cascatinha tinha acabado de deixar de ser um lamaçal onde se realizavam corridas de motocross! Era impressionante ver aqueles caras adultos com roupas legais e aquelas motos barulhentas e tudo sujo de barro! Eles corriam, saltavam, derrapavam... É claro que as crianças queriam isso de alguma forma. Eis que a mão invisível do mercado, percebendo a demanda potencial, atirou no passado as antigas Peri e Ceci e presenteou as crianças com Caloi Cross, e a BMX! Uma revolução no comportamento da molecada.
Entre natais, aniversários e dia das crianças, os meninos começaram a ganhar suas bicicletas de bicicross e arriscar manobras como as que apareciam na televisão ou registradas nos posters fixados nas paredes de seus quartos. A ideia era colar o maior número de adesivos nas bicicletas, para parecer mais com uma moto que fosse possível. Itens de segurança? Esquece isso... estamos nos anos 80.
Uma referência dessa geração era um tal de Guto Lima, que era um piloto de motocross de verdade. Era campeão de muitas corridas e morava no bairro. Tinha um monte de tatuagens e era um cara legal. Segundo consta, foi ele que deu iniciativa à fabulosa pista de bicicross do Bom Pastor, logo ali depois da curva da Rua Vereador Sady Carnot quando vira a Rua Dr. João Penido Filho. As crianças se organizaram e num terreno baldio (que até ontem ainda estava baldio) começaram a cavar, juntar tábuas, empilhar terra, fazer rampas, enfim, uma pista de motocross, digo, bicicross. E aquilo rendeu por alguns anos.
Cada tarde, um campeonato, uma glória alcançada, uma derrota a ser vingada no próximo racha. Baterias com dois, com dez, com todo mundo, sozinho treinando, ou com plateia das meninas do bairro, ou vigilância cuidadosa dos pais. Foi numa dessas que um frequentador assíduo, que vou chamar aqui de “Antônio”, pedalando alucinadamente, dispara na sua esperada vez de pedalar. Seriam dez voltas para sagrar-se campeão daquela tarde... fez boa largada saindo em posição intermediária... até que seu pai que assistia a corrida gritou:
-
Ô Antônio!!!! Ô Antônio!!!!
Sem
dar atenção, o bravo Antônio permaneceu firme no pedal. Ultrapassou um,
ultrapassou dois... e seu pai insistiu:
-
Ô Antônio!!!! Ô Antônio!!!! Ô Antônio!!!!
Seguindo
firme, em segundo lugar, era só uma questão de tempo para superar o primeiro
que já se mostrava pressionado... e seu pai, agora mais alto:
-
Ô Antônio!!!! Ô Antônio!!!! Ô Antônio!!!! Ô Antônio!!!!
Agora
em primeiro lugar, dando volta nos retardatários, Antônio estava confiante, mas
sabia que não poderia relaxar...
-
Ô Antônio!!!! Ô Antônio!!!! Ô Antônio!!!! Ô Antônio!!!!
Como
ignorar um pai chamando por você ao lado da pista? Última volta, Antônio para a
bicicleta na margem da pista. Ofegante pergunta atônito, enquanto via ser ultrapassado
pelos outros competidores:
-
O que foi pai?!!!!
-
Essa é a última, heim!
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