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7 de setembro de 1971

Todo mundo chega em certa idade da vida e acha que seria uma boa ideia escrever um livro com seus casos e aventuras, mas temos que admitir, a maioria deles teria apenas um leitor: o revisor de textos. Se sua vida foi chata, lamento, ficaremos na página dois. Algumas pessoas contam suas histórias como lições, e essas são as mais chatas, outras contam suas histórias como infrações, essas dão best seller. Há histórias que são compartilhadas na história de um lugar, de uma gente. Essas histórias são de um tipo tal, que todas as pessoas se ligam ao acontecimento de forma que se sentem como participantes, não meras espectadoras. Elas estão "aqui" na história.

Foto: Blog Maria do Rosário

A celebração da independência é um momento de perpetuação de um evento da história. Em certos países é tão significativa, que mesmo os jovens separados no tempo por séculos, incorporam e reproduzem o sentimento de independência daquela nação. Se investem do orgulho alcançado pelos antepassados e conseguem sentir a emoção pela conquista, muitas vezes através de guerras sangrentas. Assim são os desfiles militares mundo a fora. Uma reencarnação dos heróis nos corpos dos jovens que exibem suas armas, assumindo o posto daqueles que lutaram no passado. Mesmo que a cada ano se incorporem novos uniformes, novos aparelhos, todos esses elementos se somam ao evento passado, revivido no presente.

O 7 de Setembro no Brasil deveria ser algo assim. Mas nossa história foi tão mal falada pelos nossos professores de história que, para muitos, o dia da independência é quase um feriado sem sentido. O grito do Ipiranga, por mais metafórico que seja, deveria ser um grito diário de qualquer indivíduo. Um grito de plenos pulmões contra qualquer forma de dependência, de autorização, de permissão, de licença, ou mesmo de alvará da prefeitura ou pedir à esposa para sair para tomar cerveja com os amigos. Afinal, quem seria contra independência? Todo 7 de Setembro é uma espécie de bodas ao contrário, uma celebração da separação. A festa do divórcio!

Foi num 7 de Setembro, em 1971, que a independência do Brasil ganhou um outra página, aqui na antiga Rua Direita, a Avenida Rio Branco. Não foram exatamente os Dragões da Independência, nem algum nobre ou político, tão pouco militar, afinal independência de verdade só pode ser feita por gente independente. Mas, foi um militar que, como diretor de cinema, achou boa ideia convidar o Aeroclube de Juiz de Fora para participar da festa. O general solicitou à direção do Aeroclube a gentileza de que seus aviões fizessem sobrevoos na região do desfile, e que fizessem tanto barulho quanto possível para elevar a vibração do público em sua festa ufanista.

A revoada de aviões do Aeroclube era uma coisa habitual nos desfiles de 7 de Setembro aqui em Juiz de Fora. Soldado marchando, tanque passando, fanfarra do Machado Sobrinho tocando, famílias com as crianças assistindo, algodão doce, bandeirinhas... o que pode dar errado? O que pouca gente sabe é que “hora de voo” é coisa que sempre custou muito dinheiro, e um convite dessa natureza, feito por general, isenta pilotos de arcar com o combustível pessoalmente, e a conta vai para a caixinha do clube. Ou seja, voo com dinheiro dos outros.

Aeroporto cheio de voluntários, mais de um para cada avião, e as estrelas eram os acrobáticos PT19 que decolaram primeiro. Na frente, seguiu o divertido João Valle, e atrás meu pai, não menos aventureiro, Nilton de Loreto. Eram aviões biplace, com duplo comando. Na garupa do comandante Nilton estava a Heleni Berg, secretária de voo do aeroclube. Do que eu me lembro, uma mulher bonita, de sorriso largo, voz alta e alta rizada. Diz a boca miúda, que todos os pilotos a cortejavam, mas ela vai ao túmulo incólume, nunca deu atenção àquela turba de babões.

Bom, voltando ao assunto, a pista de pousos e decolagens ficava no bairro Nova Era, na área onde está atualmente o Colégio Militar. Para chegar na região do desfile, bastava decolar no sentido centro, seguir em linha reta um pouco à esquerda da margem do Rio Paraibuna, passando por trás da Mata do Krambeck e ligeiramente atrás do Eldorado e dobrar à direita para estar de frente à Garganta do Dilermando, alinhado na longa reta da Avenida Rio Branco, no sentido norte-sul.

O que o par de almas do avião de trás ainda não sabia ao decolar, era das intenções do piloto da frente. Já na curva em direção à avenida, João iniciou a descida já passando entre os barrancos da Garganta. O avião de trás, desceu atrás... e desceram e voaram num impensável rasante. Naquela época, a Rio Branco tinha poucos prédios, e concentrados no trecho entre Floriano e Independência. As fotografias que registraram o acontecido, foram tiradas na direção norte, a partir do cruzamento da Halfeld. Naquele trecho estavam ao equivalente entre os quintos e sextos andares dos edifícios.

Um detalhe que não passa despercebido na foto é a ligeira inclinação do segundo avião, efeito da esteira de turbulência provocada pelo primeiro. Imediatamente, meu pai deixou-se afastar do outro e... gostaram da brincadeira. Deram a volta umas quatro vezes. Voando baixo por toda a avenida até virar à esquerda após a Santa Casa, subindo para vencer o morro do Olavo Costa, desciam do outro lado retornando na direção norte, também em rasante, ao longo do Rio Paraibuna e atrapalhando o futebol no Tupinambás. De tão baixo que voavam, lá pela segunda ou terceira passagem, os meninos de má pontaria que brincavam no alto do Olavo decidiram tentar atirar pedras nos aviões, os jogadores do Tupinambás, também de má pontaria até hoje, saíam em correria do campo; e dando a volta na altura do Sport, retornavam ao desfile que...

O desfile acabou.

A cada volta, mais baixo. Há relatos que no solo tinha-se gritos (muitos gritos), histeria, desmaios, choro de criança que perdeu o algodão doce, pisões de debandada, soldados em rendição, cidadãos em fúria. Outros, ainda curiosos e aguardando algum desastre, já se encolhiam nas calçadas sob as marquises, mas continuavam esperando a próxima passagem ou a queda dos aviões. Os outros aviões que vieram em seguida e voavam ao alto, custaram algum tempo para entender a correria do povo em terra e o porquê do fim do desfile.

Feito o malfeito, a dupla de pilotos retornou com seus passageiros atônitos ao campo de pouso, para degustar os espólios da travessura. E como todo bom vinho pode virar vinagre, ambos foram severamente advertidos e punidos com uma suspensão do direito de voar por seis meses. E dizem que saiu barato. As fotos desse voo são da primeira passagem, o que prova que nem o fotógrafo permaneceu ali para ver a segunda. O evento dividiu opiniões. Sou daqueles que acredita na inocência e boa intenção desses cavalheiros, que queriam abrilhantar a festa da Independência do Brasil. Afinal o general não pedira bastante barulho? Ordem dada, ordem cumprida. 

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